quarta-feira, 23 de maio de 2012

Certeiro

Quem me lê há mais tempo sabe que nunca fui fan de Marinho Pinto. Discordo totalmente da forma como critica e como reclama. Mas, apesar da forma trauliteira, tem razão na maioria do que diz. E no discurso que fez na semana passada, no Dia do Advogado, voltou a ser certeiro em muitas questões. deixo um excerto:

"Os pais fundadores do actual regime democrático, ou seja, os lideres dos 4 principais partidos políticos que emergiram com a revolução do 25 de Abril de 1974. Foram 4 homens de formação jurídica profundamente comprometidos com os problemas do ser humano que sabiam como sabem os advogados que a primeira exigência do direito é o respeito absoluto pela pessoa humana.
Hoje os dirigentes do país só sabem falar em dinheiro, como ganhá-lo, como multiplicar, nem que seja há custa dos mais desumanos sacrifícios impostos às pessoas.
Quem não tiver dinheiro não tem direitos. E o Estado exige dinheiro e cada vez mais aos idosos e à população em geral para terem acesso à saúde e se o não tiverem que morram abandonados na solidão.
O estado exige dinheiro e cada vez mais a quem precisa de ir ao tribunal para defender os seus direitos e interesses legítimos. Quem o não tiver que faça justiça pelas próprias mãos.
O Estado exige dinheiro aos estudantes e cada vez mais para poderem estudar. E uma vez concluída a sua formação académica lança-os no desemprego ou então aconselha-os sem qualquer pudor a emigrarem. São os próprios governantes deste país que dizem aos jovens para procurarem outro país e não há maior forma de exemplificar a ideia que esses governantes têm do futuro de Portugal.
Essa volúpia compulsiva pelo dinheiro chegou já à própria justiça onde tudo é permitido para criar excelentes oportunidades de negócio com a própria justiça. Tem sido um verdadeiro regabofe, um fartar de vilanagem.
A acção executiva que durante séculos foi tramitada sob a direcção de um juiz, de repente, foi entregue a profissionais liberais que nem sequer eram licenciados em direito.
O resultado está a à vista e dispensa-me de o explicitar.
Com a mesma leviandade o actual Governo que entregar o processo de inventário aos notários. Metamorfoseando-os por decreto em juízes e olvidando que esse é o processo mais litigioso de todos. Quando os herdeiros se entendem quanto à partilha da herança tudo corre bem. E não problemas nenhuns. Quando se não entendem. Quase sempre tudo corre mal. E é o juiz enquanto representante da soberania do Estado e sobre tudo os advogados enquanto representantes dos interessados que logram a solução dos problemas através da composição justa dos quinhões hereditários.
Em vez de dignificar e fomentar a justiça pública, a justiça soberana, o Governo está deliberadamente a degrada-la para obrigar os cidadãos e as empresas a recorrerem à procura de outras formas de justiça privada, como as arbitragens, na qual alguns membros deste Governo têm interesse directo e bem conhecido do público. É a velha táctica de degradar deliberadamente serviços públicos para obrigarem as pessoas a recorrerem aos privados nos quais muitas vezes os próprios governantes têm interesses directos.
As ligações da actual Ministra da Justiça ao negócio das arbitragens deveria inibi-la de tomar decisões sobre esta matéria.
Mas não. Com o maior descaramento ela fá-lo sem que aparentemente ninguém se preocupe com isso.
Mas há mais. Este Governo, que se apresenta como o campeão do liberalismo em matéria económica, actua no domínio da justiça como se o regime fosse uma ditadura, querendo controlar todos os aspectos mesmo os mais insignificantes da vida dos cidadãos.
Este Governo quer combater a criminalidade como na Idade Média se perseguia a bruxaria. Quer meter na cadeia quem minta aos funcionários públicos equiparando-os assim à dignidade dos juízes.
Este Governo quer julgar em processo sumário e a quente em cima dos acontecimentos crimes gravíssimos ao mesmo tempo que institui a prisão obrigatória com crimes com diminuta gravidade.
Este Governo enquanto privatiza dimensões fundamentais da justiça quer transformar outras formas de justiça tradicionalmente nas disponibilidade das partes em justiça estritamente pública totalmente na dependência do juiz como acontece com as propostas de alteração ao Código de Processo Civil.
Quem concebeu e apresentou estas propostas não anda seguramente pelos tribunais ou então quer degradar ainda mais a justiça do Estado para que as pessoas fujam delas e recorram à justiça privada, nomeadamente, às arbitragens.
O que as propostas de revisão do Código de Processo Civil vão ocasionar é uma debandada dos tribunais para as arbitragens e outras formas privadas de justiça. E é isso que pretende o actual Governo e alguns dos seus seguidores na área da justiça e até própria Ordem dos Advogados.
O processo civil cujo objecto está na disponibilidade das partes – Devia estar na disponibilidade das partes – passará a ser totalmente controlado pelo juiz sem que os portadores dos interesses privados em confronto, interesses disponíveis repete-se, possam ter qualquer decisão sobre a instância.
A fúria legisladora do actual Governo no mundo da justiça é uma fúria assassina para a própria justiça.
Não há. Nunca houve. Nem haverá justiça digna desse nome num país onde as leis fundamentais para os cidadãos estão sujeitas a permanentes alterações feitas sobre tudo ao sabor dos humores instáveis de quem tem, lidera, e gere a respectiva pasta.
Será que os restantes membros do Governo não pensam individualmente consequências para o país desta instabilidade legislativa?
Será que os deputados na maioria perderam todo o sentido de dignidade da sua função de legisladores e estão ali apenas para aprovar obedientemente todos os disparates legislativos que lhe sejam remetidos por este Governo de economistas?
O que se passou com aquela tentativa primária de criminalizar o enriquecimento ilícito a reboque de um jornal tablóide de Lisboa, atropelando sem nenhum pudor, alguns dos princípios fundamentais da nossa Constituição.
Não estará a pensar por momento que seja na relevância de uma função, a de deputado, que não pode ser colocada ao serviço dos delírios legislativos de um Governo que não tem uma visão global e integrada dos problemas da justiça e apenas está interessado em fazer ajustes de contas com os seus próprios fantasmas e criar condições para que em torno da justiça floresça e prosperem o mesmo tipo de negócios privados que outrora floresceram e estão a prosperar em torno da saúde.
Será que o nosso parlamento os nossos deputados consentirão que as declarações prestadas em inquérito perante o Ministério Público, ou seja, perante os acusadores valham como prova em julgamento perante um juiz quem em muitos casos nem se quer ouviu o arguido?
Será que os nossos deputados vão consentir nessa aberração quando se sabe que a prisão preventiva é cada vez mais usada fora das suas finalidades legais e como instrumento para forçar os arguidos a colaborarem com os investigadores como ainda esta semana se viu com um processo muito mediático?
Será que a prisão e liberdade dos cidadãos vai estar subordinada não aos imperativos legais abstractos, objectivos e gerais, mas ao arbítrio de conveniências processuais dos acusadores?
Então agora o juiz de instrução pode ser ainda mais papista que o Papa, ou seja, pode durante um inquérito presidido pelo Ministério Público, aplicar medidas de coação mais severas do que as pedidas pelo próprio Ministério Público?
Que justiça é esta num país com a mais baixa taxa de criminalidade da Europa Ocidental. Com a criminalidade menos violenta da Europa Ocidental. Mas que já outra vez com a maior taxa de reclusão da Europa Ocidental. Ou seja, com cerca de 130 reclusos por cada 100 mil habitantes?
E meus caros colegas perante este panorama o que faz o escol da nossa classe?
O que faz a elite da advocacia portuguesa diante desta calamitosa situação?
Calam-se. Ou então até aplaudem em público os causadores desta situação. E por vezes até – pasme-se – vêm a terreno atacar aqueles que em nome dos advogados e dos cidadãos a denunciam publicamente.
O dinheiro, sobre tudo quando é muito, tem a virtualidade de comprar até parcelas significativas da dignidade pessoal e profissional.
Meus caros colegas muitos dos grandes nomes da advocacia portuguesa estão calados perante este panorama desastroso apenas para não prejudicarem os excelentes negócios que têm andando a fazer e continuarão a fazer e esperam continuar a fazer com o Estado, com o Governo, com as empresas públicas, com os institutos públicos com administração central e local.
O silêncio voltou ser literalmente de oiro. O silêncio voltou a ser literalmente a alma de muitos e bons negócios que não que não se querem conhecidos.
Infelizmente não podemos contar com esses empresários da advocacia para os grandes combates que teremos de travar no futuro e que já estamos a travar.
A eles só lhes interessa o dinheiro. E por dinheiro e pela expectativa de o ganharem mais facilmente alguns até são capazes de se aliarem aos nossos piores inimigos e virem a público atacarem aqueles que em nome dos advogados e da cidadania mais se destacam nesses combates.
Meus caros colegas o que pensar de um Governo que ataca como nenhum outro o fizera antes, a independência dos juízes portugueses, colocando-a muito abaixo da dos funcionários de uma instituição de supervisão bancária como é o Banco de Portugal.
Que pensar de um Governo que reduz os titulares de um órgão de soberania como são os tribunais à categoria de meros funcionários com uma dignidade e um estatuto funcional muito inferior ao dos funcionários daquela instituição.
Então das decisões do Banco de Portugal em matéria de supervisão não se recorre para os tribunais? Para um juiz?
Então porque é que este Governo cortou os rendimentos dos juízes e não os dos funcionários do Banco de Portugal?
Este Governo de economistas quis dizer pura e simplesmente com essa medida duas coisas muito claras:
Que os juízes portugueses são meros funcionários e que para ele, Governo, os funcionários do Banco de Portugal são mais importantes, são mais independentes e têm mais dignidade do que os juízes de direito.
Essa situação foi lamentavelmente – temos que o reconhecer – propiciada pelos próprios juízes. Que ao criarem uma organização sindical para os representarem e sobre tudo ao fazerem greves às suas funções soberanas, criaram as condições para assim serem tratados.
Dir-se-ia que eles estão a ser tratados como actuaram ao longo destas últimas décadas. Dir-se-ia que isto é uma questão inter alios.
Mas não. Está em causa a boa administração da justiça que é um valor superior do Estado de direito e um serviço público e essencial ao progresso económico e ao desenvolvimento pacífico da nossa sociedade democrática.
Não haverá boa administração da justiça sem juízes independentes. E não haverá juízes independentes quando um qualquer Governo por motivos conjunturais lhes pode diminuir tão drasticamente as remunerações.
Meus caros colegas ao contrário do que actuação de muitos juízes tem sugerido, a começar por muitos dos seus dirigentes sindicais, a independência deles não é um privilégio corporativo ou pessoal. Mas sim uma garantia do estado de direito aos cidadãos e à sociedade democrática de que a justiça será administrada de acordo com a lei e o direito sem quaisquer dependências em relação a outras instancias. Por isso tal como em outros momentos da nossa História teremos de ser nós advogados a sair também e mais uma vez em defesa dessa garantia da boa administração da justiça que é a independência dos juízes. Sem juízes independentes não haverá justiça. E por isso é nosso dever lutar pela independência dos juízes pois só assim poderemos ter uma justiça realmente independente."

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