quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Leituras

"O caso "Face oculta" veio revigorar as preocupações gerais com a corrupção e condutas equiparáveis. Todos estão contra evidentemente. E todos se chegam à frente para mostrar serviço nesta cruzada. Uma cruzada em que todos os meios são lícitos. É assim nas cruzadas, sejam do Oriente, sejam do Ocidente. Aconteceu assim no combate às drogas. E no combate ao terrorismo. Agora, no combate à corrupção (embora mais moderadamente, porque os inimigos podem ser nossos amigos...).
É neste quadro que regressam as tentativas de criminalização do enriquecimento ilícito, propostas, mais uma vez, pelo BE e pelo PCP. Em que consiste o tipo legal proposto: simplesmente na obtenção de património ou de rendimentos superiores aos declarados para efeitos fiscais desde que "não resultem de nenhum meio de aquisição lícito" (BE), ou quando os suspeitos "não justifiquem, concretamente, como e quando vieram à sua posse ou não demonstrem satisfatoriamente a sua origemn ilícita".
Ou seja, o crime consuma-se com a mera obtenção dos bens ou rendimentos "anormais", sejam eles ilícitos ou lícitos!!!
Caberá então o suspeito provar que a origem é lícita para não ser condenado. Tudo o que não for lícito é (automaticamente) ilícito!
Esta aberração jurídica viola o princípio da presunção de inocência (ao impor ao suspeito o ónus da prova da licitude da sua conduta) e viola eventualmente o princípio do "non bis in idem", caso a conduta que permitiu a aquisição ilícita tenha sido punida ou esteja a ser perseguida em processo próprio, e ainda o princípio da culpa, caso nada se prove quanto à proveniência dos bens ou rendimentos adquiridos.
Isto para além da dificuldade de densificar os conceitos de "valor manifestamente discrepante" ou "rendimentos anormalmente superiores", que suscitam dúvidas quanto ao respeito pelo princípio da legalidade.
É claro que aos promotores pouco interessam estas dificuldades jurídicas, que não serão mais do que "chinesices" dos juristas, obstáculos "formais" ao "combate necessário" e "imperativo nacional", obstáculos esses que devem ser removidos sem contemplações nem piedade.
E, uma vez legislado, se o for (e espera-se que haja na AR juristas preocupados com a Constituição), os promotores ficarão tranquilos: agora há lei; os tribunais que a cumpram. E se surgirem dificuldades, constitucionais ou meramente práticas, se os resultados não vierem a ser os esperados, a culpa é obviamente dos tribunais (da "justiça", como agora se diz). O que é preciso é mostrar serviço e encontrar culpados, mesmo que os problemas continuem (...)"

(Eduardo Maia Costa, no Sine Die)

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