quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A face oculta da Justiça

Como se sabe, as nossas leis são, em regra, mal redigidas, dúbias, demasiado vagas - dando azo a inúmeras interpretações - e feitas por quem tem interesses paralelos, como é o caso dos deputados/advogados que legislam sobre matérias que aplicam na sua actividade fora do parlamento, no seu escritório e para benefício dos seus clientes.
Mas se há matérias que não deixam grande margem para dúvidas é, em processo penal, a das escutas como meio de obtenção de prova.
Vem isto a propósito do processo "Face Oculta" e das conversas interceptadas de Armando Vara e José Sócrates.
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça mandou destruir as gravações das conversas em que o Primeiro-Ministro entra, causando, politicamente, inúmeras críticas e pedidos de esclarecimento. Todavia, considero que, do ponto de vista jurídico, não existem grandes dúvidas, senão vejamos...

Com base nas notícias que têm vindo a público pelos media, podemos, portanto, partir do pressuposto que era Vara que estava a ser escutado e, por acaso, um (ou mais) dos telefonemas foi com Sócrates, com quem falou sobre diversos temas, temas esses que, até ao momento, desconhecemos. Vamos partir do presuposto, também, que nessa conversa (ou numa dessas conversas), falou-se sobre assuntos suspeitos ou a conversa apontou para a prática de ilícitos criminais. Isto é, vamos partir do pressuposto que Sócrates foi burro e falou pelo telefone com Vara sobre negócios e pagamentos e tal... Analisemos, então, o caso:

1. Todas as escutas têm, obrigatoriamente, de ser autorizadas, previamente, por um Juíz de Instrução, de acordo com o regime do art.º 187º do Código de Processo Penal. Ou seja, se forem realizadas sem o despacho prévio do JIC (Juíz de Instrução Criminal), são automaticamente nulas (art.º 190º).
Mas existem requisitos para a sua admissibilidade. As escutas só poderão ser autorizadas em casos excepcionais, quando, por exemplo, não exista outro meio de obtenção de prova (princípio da subsidariedade). Se existirem outros meios de prova (documentos, por exemplo), suficientes para a descoberta da verdade e para a condenação do arguido, então não deverá ser autorizada a escuta.

2. Quando o suspeito ou arguido é o Presidente da República, o Primeiro-Ministro ou o Presidente da Assembleia da República, em vez de ser o JIC a autorizar as escutas, é o Presidente do STJ (art.º 11º, nº2, b)).

3. Chegados aqui, deparamo-nos com o primeiro problema: Sócrates não é (ou era), até ao momento em que falou ao telefone com Vara, suspeito de estar envolvido no processo "Face Oculta".
Ora, estabelece o nº4 do art.º 187º que as escutas apenas poderão incidir sobre "suspeito ou arguido; pessoa que sirva de intermediário (...); vítima de crime, mediante o respectivo consentimento(...)"
Sócrates não assumia nenhuma destas posições.
Coloca-se a pergunta: serão admissíveis as escutas em prejuízo de Sócrates?

4. O nº7 do art.º 187º diz-nos que "a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no nº4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no nº1".
Ora, como se disse no ponto anterior, Sócrates não era suspeito, arguido, ou mesmo vítima ou pessoa que sirva de intermediário, pelo que não são admissíveis as escutas contra si.

5. O nº7 do art.º 187º (parte inicial, que remete para o art.º 248º - "Comunicação da notícia do crime") deixa, porém, uma salvaguarda: mesmo sendo inválidas e não podendo ser utilizadas contra Sócrates, pode a autoridade policial responsável pela escuta e que ouviu a conversa, dar conhecimento ao Ministério Público do teor desta, para ser aberto inquérito, se for esse o entendimento do MP.
Ou seja, ao tomarem conhecimento de um eventual crime, até então desconhecido, ou da intervenção de pessoas de quem não se suspeitava, a autoridade policial informa o MP, mantendo-se, todavia, as escutas inválidas para aquela pessoa.
Aparentemente foi isso que fez o MP, enviando certidões para o STJ. O problema é que enviaram cópia das escutas, quando estas são inválidas, pelo que o STJ não teve outra alternativa senão declará-las nulas para aquele efeito. Quanto ao inquérito a abrir pelo MP, aquele depende da interpretação dos factos e da avaliação concreta do MP, nomeadamente a nível da probabilidade de se estar perante ilícitos criminais, da possibilidade ou não de se recolherem meios de prova, etc.

6. Mas resta-nos outro problema: o STJ declarou nulas as escutas das conversas entre Vara e o PM, quer contra Sócrates, quer contra o próprio Vara. Se quanto ao PM, não restam dúvidas de que não são válidas, já quanto a Vara deixa-me, no mínimo, muitas dúvidas.
As escutas foram (até prova em contrário) legalmente autorizadas, previamente, por um JIC, pelo que apenas no caso do nº6 do art.º 188º do CPP não são válidas. Diz-nos esta norma que "o juiz determina a destruição imediata dos suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo:
a) Que disserem respeito a conversações em que não intervenham pessoas referidas no n.º 4 do artigo anterior; (suspeito, arguido, pessoa que sirva de intermediário, ou vítima com o respectivo consentimento)
b) Que abranjam matérias cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado; ou
c) Cuja divulgação possa afectar gravemente direitos, liberdades e garantias (...)"
A única hipótese, remota, que dislumbro no caso concreto será o facto das conversas terem um teor privado que, ao serem divulgadas, afectam gravemente os intervenientes, sobretudo o PM, não visado no processo. É o chamado princípio da proporcionalidade, em que o prejuízo é bem maior do que a não validação das escutas, podento ter sido esta a interpretação do Presidente do STJ. Só assim compreendo que as escutas tenham sido invalidadas também para o "Face Oculta"...


Penso ter ficado esclarecida a questão das escutas. Mas há outros aspectos, que merecem algumas considerações:

Como em cima escrevi, a questão em causa é, do ponto de vista jurídico, linear e relativamente simples: só mediante autorização prévia do Presidente do STJ é que o PM pode ser escutado. E qualquer jurista que exerça Direito Criminal sabe isto. Esta questão levanta dúvidas, deixando mesmo no ar a possibilidade de o alvo das escutas ter sido o PM e não Vara...

b) Opiniões contrárias à minha foram já manifestadas.
Por exemplo, Luís Filipe Carvalho admite que as escutas que envolvam o PM são também inválidas contra Vara. Como em cima escrevi, considero que são, salvo a hipótese que referi.
Manuel da Costa Andrade, por seu lado, defende que as escutas são válidas, mesmo para um novo processo, a instaurar (neste caso, contra o PM). Diz o membro do Conselho Superior de Magistratura que "este regime (a escuta ter que ser previamente autorizada pelo Presidente do STJ) não prejudica o regime especial dos conhecimentos fortuitos, segundo o qual, feita validamente uma escuta, são válidos os conhecimentos adquiridos relativamente a crimes do catálogo". Ora, salvo melhor opinião, o nº7 do art.º 187º do CPP é bastante claro nesta matéria. Acresce o facto de a ratio da norma constante no artº 11º ser precisamente obrigar a que as escutas às três principais figuras do Estado sejam autorizadas apenas pela mais alta figura da Magistratura judicial, o Presidente do STJ, que, em termos constitucionais, está ao nível dessas 3 figuras. Mesmo que se admitisse, em tese, a possibilidade de as conversações serem válidas contra pessoas não abrangidas pelas escutas (sem ser ao abrigo do nº7 do 187º), estar-se-ia a permitir que as 3 figuras pudessem ser escutadas por autorização de um JIC, de um magistrado de primeira instãncia...


Uma última nota, já política: como escreveu o Juíz Conselheiro do STJ Eduardo Maia Costa, "cada vez gosto menos destas investidas anti-corrupção aparatosas, com nomes de código próprias de filmes policiais negros, detenções acompanhadas mais ou menos em directo pelos jornalistas, muito alarido todo o dia nos diversos canais de TV, repórteres em permanência à porta dos tribunais à espera da saída dos detidos, atropelando-se uns aos outros para serem os primeiros a dar a notícia das medidas de coacção, a divulgação intensiva da fotografia dos políticos envolvidos (já de alguma forma condenados...). Sabemos que o Zé Povo está ansioso por encontrar "culpados" para sobre eles descarregar todas as desgraças que o sobrecarregam. E que a luta contra a corrupção é um tema altamente rentável para a comunicação social. (...)"
Eu não diria melhor...

2 comentários:

Anónimo disse...

O artigo 11 só tem aplicação quando os sujeitos aí referenciados são o alvo. Não pode, por definição haver, autorizações quando os conhecimentos são fortuitos!

Ricardo Sardo disse...

Caro anónimo, repito o que escrevi na al. b):
"Acresce o facto de a ratio da norma constante no artº 11º ser precisamente obrigar a que as escutas às três principais figuras do Estado sejam autorizadas apenas pela mais alta figura da Magistratura judicial, o Presidente do STJ, que, em termos constitucionais, está ao nível dessas 3 figuras. Mesmo que se admitisse, em tese, a possibilidade de as conversações serem válidas contra pessoas não abrangidas pelas escutas (sem ser ao abrigo do nº7 do 187º), estar-se-ia a permitir que as 3 figuras pudessem ser escutadas por autorização de um JIC, de um magistrado de primeira instãncia..."

Se fossem válidas, como diz, então estaríamos a desvirtuar o art.º 11º do CPP, que é claro nesta matéria. Teríamos um JIC, de primeira instãncia, a validar escutas que, por força da ratio do art.º 11º e da intenção do legislador, só poderiam ser validadas pelo Presidente do STJ. Estaríamos a contornar a lei (incluindo o espírito desta) através de uma manha jurídica.
Mais... Poderia, até, levar a que se escutasse terceiros, para "apanhar" o verdadeiro visado (isto independentemente de ser uma das 3 figuras mais altas do estado ou não). Como escrevi sobre o nº7 do art.º 187º, apenas em determinados casos (fortuitos) é que as escutas são válidas, pois a regra - clara - é que todas as escutas terão que ser autorizadas a priori. Ou seja, as escutas fortuitas, em que a autorização (neste caso, validação) é dada a posteriori, são extremamente limitadas e excepcionais, em que os casos em que são possíveis estão tipificadas na lei, sem azo para outras interpretações.

Espero ter esclarecido...
Cumprimentos.